O caso Jonas-Ensitel foi o mais recente caso de uso de uma posição dominante por parte de uma empresa para tentar impor a um cliente as suas perspectivas deturpadas de mercado. É verdade que se tratou de um caso relacionado com hardware, e não com software, mas a realidade é que estas posições são comuns em todos os lados, e são um dos reais motivos da pirataria.
É claro que há pirataria só porque alguns querem piratear. Já vi comentários em fóruns de pessoas que argumentavam que não iam pagar por um DVD quando este se encontra disponível para download na internet. A essas pessoas há que questionar o porque pagar seja pelo que for, quando podemos sair sem pagar. É o argumento mais idiota que pode ser apresentado e demonstra total falta de cultura e mesmo de civismo, algo que parece não abundar entre os Portugueses.
Mas até há uma desculpa para estas pessoas, e que se deve ao facto de não terem a mínima consciência de que o que fazem é de facto uma ilegalidade. E se isso acontece, apesar de o desconhecimento da Lei não invalidar o cumprimento da mesma, há que deitar as culpas não só a quem comete o acto ilegal, mas também àqueles a quem compete alertar para a ilegalidade.
Pegando aqui num DVD original qualquer à sorte, decidi introduzir o mesmo no leitor e ver o aviso que ele possui sobre a questão das cópias, algo que existe em todos os DVDs que possui a função de mentalizar e alertar para a ilegalidade. Ora vamos analisar o texto a ver se efectivamente ele consegue ser eficaz no que é suposto fazer:
Os avisos legais presentes nos DVDs
Para começar, onde na versão original temos um grande texto a letras vermelhas a dizer AVISO, aqui temos um texto a dizer: PORTUGAL. Note-se que este é o mesmíssimo texto que aparece em qualquer DVD comprado ou alugado, pelo que se crê que a ACAPOR, tão interessada em repor a legalidade das coisas devia rever esta situação rapidamente, não vão as pessoas pensar que o texto de baixo que apenas está uns breves segundos no ecrã, e que infelizmente não podemos passar à frente, se trata de um incentivo para cantar o hino nacional.
Mas ao analisarmos o texto com mais atenção vemos aquilo que já dissemos no artigo anterior: O proprietário dos direitos de autor licenciou este DVD .
Quer isso então dizer que com a queixa apresentada a ACAPOR está a personificar direitos que não possui. Eventualmente pode-se queixar da diminuição de negócio, mas a questão dos direitos de autor, o seu cavalo de batalha, é algo que não lhe diz respeito, isto claro, a não ser que se encontre devidamente mandatada para tal, o que dificilmente aconteceria uma vez que o IGAC é quem deveria encabeçar essa batalha caso assim fosse.
Mas há muitas mais curiosidades no texto: Para começar é usada a frase o proprietário licenciou o DVD. Ora o DVD é a rodela de plástico que temos na mão e não a obra em si. É certo que aquele DVD em particular possui a obra, e como tal a frase até está correcta ao proteger a totalidade do produto. Mas com este texto, aparentemente, a haver violação da Lei, só o faz quem retira o produto do DVD original. A partir daí, dado que o que está licenciado é o DVD e não a obra em si (e recorda-se que isto é de acordo com o texto), não há porque pensar ao ler o aviso que as cópias das cópias se encontrem protegidas pelos mesmos licenciamentos.
Depois o texto cai num erro que se considera basilar. É que incluí no mesmo saco questões como a cópia e a cedência do DVD, alegando que ambas são ilegais de forma não autorizada.
Ora a cedência é uma questão que nunca vi discutir a sua legalidade, sendo perfeitamente banal e aceite a compra de DVDs para oferta, que não é mais do que uma cedência definitiva do produto.
Poderão alguns alegar que isso se trata de uma doação e não uma cedência, mas isso são meras palavras com a mesma consequência prática. Afinal, imaginemos que o texto se referia, ao usar o termo cedência, a empréstimos, e não à cedência definitiva ou doação, a verdade é que então bastava em vez de emprestar algo, passar a doar o mesmo com a promessa de que seria doado de volta passado uns dias. É como disse mero jargão, com consequências práticas idênticas. Ou será que para tudo ser transparente teremos de indicar, no acto de compra, o destinatário final do DVD?
E se no mesmo texto onde se fala na proibição de algo que nunca ninguém discutiu ou alegou ser ilegal, se junta a questão da cópia que, como já referimos no artigo anterior, a Lei prevê, mas sem definir exactamente o que é e o que não é legal, então como esperar que um Português sem formação jurídica saiba se é ou não ilegal essa situação?
Há muitos anos falava-se do mesmo sobre as fotocópias e actualmente esse acto tornou-se banal.
Aquele aviso ou “licença de utilização” presente nos DVDs tenta mesmo proibir coisas que são autorizadas por lei. O CDADC diz que é lícito, sem o consentimento do autor, a “reprodução efectuada por instituições sociais sem fins lucrativos, tais como hospitais e prisões, quando a mesma seja transmitida por radiodifusão”. Ou seja, os hospitais e prisões podem fazer cópias para radiodifusão interna, apesar da licença de utilização lhes tentar negar até o uso dos originais!
Um historial de queixas e de supostos infractores que prejudicam o negócio
Situações como a da ACAPOR nem são novidade, e ao longo dos tempos houve dezenas ou mesmo centenas de casos onde, à semelhança do que acontece aqui, as empresas se viram ameaçadas com o avançar da tecnologia e o rumo do mundo, pensando que tal seria o fim do seu negócio. Isto claro, até se adaptarem à realidade das coisas e hoje já não passarem sem elas.
Por exemplo, as editoras discográficas tentaram aniquilar as rádios quando estas apareceram. A transmissão livre das músicas iria fazer com que as pessoas deixassem de comprar os discos e isso seria o fim das editoras. Como foi até mostrado num filme recente, chegou a haver rádios piratas a transmitir de barcos em alto mar para fugir a estas coisas (e à censura dos governos).
Como a história ditou, não só não se verificou o receio das editoras, como hoje em dia estas querem mesmo que as suas músicas passem na rádio. É um meio de promoção fundamental! Todos ouvem de graça, e as estações de rádio pagam pouco pelos direitos de difusão, mas é devido a isso que as vendas aumentam.
Antes disso tinham sido os compositores e músicos a rebelarem-se contra as pianolas (pianos automáticos) e contra a nascente industria de gravações fonográficas (sim, essa mesmo que hoje todos querem “salvar”). O compositor americano, de descendência portuguesa e bávara, John Philip Sousa, chegou a argumentar perante o Congresso dos EUA que essas “máquinas falantes” iriam “arruinar o desenvolvimento da música” e que as cordas vocais desapareceriam das nossas gargantas, tal como o homem perdeu a cauda ao evoluir do macaco.
Da mesma forma, Hollywood tentou impedir os filmes na televisão quando esta apareceu. Então não é que aquele sistema permitia às pessoas ver o filme de borla sem pagar nada? Isso iria matar os cinemas e a produção de filmes deixaria de ser rentável. Umas décadas mais tarde, novo pânico perante o aparecimento dos gravadores de vídeo domésticos. Um aparelho que (imagine-se!) permitia gravar programas e filmes da televisão e revê-los vezes sem conta sem pagar nada por isso! Um representante dos estúdios de Hollywood defendeu que tal coisa iria “estrangular” a indústria.
Certamente não vos escapará a ironia. É isso mesmo. Os aparelhos que permitiram aos associados da ACAPOR construir os seus negócios, foram em tempos vistos como máquinas infernais que iriam arruinar a indústria cinematográfica e cuja venda e utilização devia ser ilegalizada!
Mas mais uma vez, a tecnologia não foi proibida. Houve sim uma adaptação à nova realidade do mundo, e hoje em dia as televisões, o VHS e os DVD são vistos pelos estúdios com bons olhos, e muitas vezes são mesmo a forma de salvar um filme do fiasco financeiro total.
É sempre assim quando novas tecnologias aparecem e os modelos de negócio ainda não estão adaptados a eles. Hoje em dia os computadores ligados à internet, com a sua incrivel capacidade de copiar a distribuir conteúdos, são as novas máquinas infernais que vão acabar com o cinema e a música. A ACAPOR age aqui como um dinossauro que parece ignorar aquilo que a história ensinou.
Mas no seu caso há algo mais, pois apesar do alegado, o que está em causa nem é o pobre do autor que recebe uma percentagem mínima de cada venda, mas sim a grande fatia que os modelos de comércio pela internet eliminam, ou pelo menos não justificam, e que cabem aos intermediários (ver a primeira parte do artigo).
Legalmente até sou tentado a dar razão à ACAPOR (apesar de não lhe reconhecer autoridade moral para a eventual queixa, a não ser que devidamente mandatada pelos reais titulares dos direitos de autor), devido à questão da distribuição.
É que realmente me parece cristalino que, apesar de todas as dúvidas que a legislação coloca quanto à legitimidade ou não do download, a distribuição de uma obra sobre a qual não se possui os direitos de autor ou de distribuição é efectivamente ilegal.
E esse é o problema dos softwares P2P. Aí, não só os IPs podem ser consultados por todos os que usam o software (apesar de os mesmos poderem ser falsos, quer por uma questão de falsificação da prova, quer pelo uso de IPs alterados, Proxys, etc) mas, consequência do modo de funcionamento destas redes, para existir um download há também de se fazer upload das partes que já se possui. E isso, a meu ver é efectivamente e de forma clara, ilegal.
E a existir um gabinete de fiscalização será por aí que a este poderá agir. Por aqueles que distribuem conteúdos protegidos e onde a lei é clara na proibição desse facto e não por aqueles que sacam e onde a lei, nesse sentido é completamente dúbia e incompleta não se adequando minimamente às realidades de um mundo que se alterou radicalmente nos últimos anos.
No entanto não deixo de relembrar que, como já se referiu e se fez ver extensivamente na primeira parte do artigo, em nossa opinião, o IP em si não prova coisa absolutamente nenhuma.
Convém lembrar porém que lá por a partilha de ficheiros por sistemas P2P (e outros…) ser hoje considerada ilegal, tal não significa que tenha de o ser para sempre. Também a gravação de músicas, e mais tarde a sua radiodifusão, foram vistas na altura do seu aparecimento como ilegais e como ameaças mortais aos modelos de exploração vigentes na altura. Quem poderá dizer que legalizando-se a partilha de ficheiros na internet, eventualmente com o pagamento de uma pequena taxa compensatória (tal como a rádio, a cópia privada analógica, etc, etc), ela não será o meio de divulgação que potenciará outros tipos de exploração económica (novamente tal como a rádio)?
Até se pode argumentar que isso já está a acontecer, dado que as receitas globais da indústria musical (incluindo actuações ao vivo, merchandising, etc) têm aumentado, senão em todo o mundo, pelo menos em alguns países. E se se contabilizar o hardware (leitores de MP3, etc) as receitas explodiram nos últimos anos. Há hoje mais gente a dedicar-se à música, a criar mais música, e a ganhar mais com isso do que em qualquer outra altura da história da humanidade! Será isto apesar da “pirataria” na internet, ou antes por causa dela?
São já inúmeros os exemplos de artistas e bandas que colocam a sua música gratuitamente na internet, divulgando o seu trabalho e facturando de outras formas (actuações ao vivo, merchandising, licenciamento para filmes, publicidade, etc). Tal nem sequer implica que as músicas não vendam. O álbum mais vendido em 2008 na loja de MP3 da Amazon, o Ghosts I-IV dos Nine Inch Nails, foi colocado nas redes P2P pela própria banda, com uma licença Creative Commons de utilização livre para fins não-comerciais. Uma edição limitada “Ultra-Deluxe” de 300 dólares, vendeu todas as 2500 cópias em 3 dias. O Corey Smith, um ex-professor de liceu que cantava aos fins de semana, passou a profissional depois de disponibilizar as suas músicas gratuitamente na internet, e facturou 4,2 milhões de dólares em 2008 actuando ao vivo. Também vende as suas músicas no iTunes, mas quando experimentou tirar as músicas gratuitas do seu site, as vendas só diminuiram!
Na indústria cinematográfica o panorama é idêntico. Alguns negócios como o aluguer podem estar a sofrer, mas globalmente as receitas sobem. Em 2010 os estúdios de Hollywood tiveram uma ligeira descida nas receitas de bilheteira, mas em 2009 bateram todos os records (apesar de fazerem agora menos filmes do que há uns anos atrás).
E que dizer das indústrias cinematográficas da Índia, Nigéria e Hong Kong que prosperam em meios onde a pirataria (física) é banal? A Índia faz mais filmes (de longe!) e vende mais bilhetes do que Hollywood. E a Nigéria, um dos países mais pobres do mundo, e onde a venda pirata é algo completamente banal, também já ultrapassou os EUA em número de filmes produzidos. A venda pirata dos filmes nigerianos em todo o continente africano, ultrapassando as dificuldades normais da distribuição legal, tornou a Nigéria numa das maiores potências cinematográficas do mundo! Hong Kong durante décadas apenas ficava a dever aos EUA e à Índia em número de filmes produzidos, e era o 2º maior exportador. Isto com apoios estatais praticamente nulos, e um mercado interno tradicionalmente nada respeitador de direitos de autor.
Isto para mostrar que nem sempre é preciso monopólios de exploração garantidos pelos estados para que as coisas funcionem!
Na pirataria há cardos e há rosas
Há ainda outra questão que gostaria de ver abordada pela ACAPOR e todos os que se queixam da pirataria: o mercado que se gerou em torno de uma pirataria crescente e que até ao momento, devido à sua existência, tem estado sem se queixar.
Como sabemos, os preços do hardware descem radicalmente todos os anos, e há uma proliferação na venda de determinados produtos multimédia. Um ciclo vicioso de maiores vendas a levar a produção em massa mais barata, que consequentemente baixa os preços e aumenta as vendas. Tudo potenciado pela evolução tecnológica.
Notoriamente, dado que por vezes parece haver quem se esqueça que o dinheiro não cresce, que uma quebra no volume de pirataria será igualmente um factor de quebra de vendas no hardware.
Convenhamos que aqueles utilizadores que gastam todos os anos 2000 euros num computador novo é para jogar algo mais do que um jogo de 70 euros adquirido de 3 em 3 meses, pois dados os nossos salários, isso será o gasto mais realista em que podemos pensar.
E os discos de Terabytes que enchem as prateleiras das grandes superfícies servem para quê? Guardar as fotografias das férias? Com fotos JPEG a 300 KB um disco de 1 Terabyte guarda mais de 35 milhões de fotos, pelo que naturalmente o uso terá de ser outro.
E os media center e media tanks com suporte para todos os formatos vídeo mais usados na internet, acham que servem para quê? Alguém me indica uma câmara de vídeo ou outro produto que grave em formato MKV, ou que coloque legendas automáticas?
Ora se não há, então estes produtos vendem-se porquê?
E os gravadores de DVD e Blu-Ray são para guardar o quê? Documentos do Word? Filmes de férias? Os filmes se forem em HD até pode ser, mas em que percentagem é que isso ocorre?
E mesmo os ISPs, acham que vendem larguras de banda assombrosas como 1 Gigabit ou mesmo 100 megabits, ou até mesmo os 50 Megabits para quê? Jogar Farmvile? Ver vídeos no Youtube? Jogar um joguinho online? Navegar?
Convenhamos, há muitos mais interesses em jogo do que os da ACAPOR. Empresas que cresceram e se adaptaram à realidade do mundo, oferecendo ao consumidor aquilo que ele procura. Ora se até a Sony que é uma das maiores editoras de filmes (Sony Pictures) e música (Sony Music) produz e vende toda uma panóplia de produtos adaptados e criados para a cópia e visualização de conteúdo pirateado, o que há a dizer?
A eventual morte da pirataria trará como consequência o menor interesse dos utilizadores pelo novo hardware dado que a ter de pagar o conteúdo para ele na sua totalidade o aparelho torna-se menos atractivo pois naturalmente terá um uso mais esporádico. Isto é uma realidade que certos senhores não parecem entender ao ver apenas a sua perspectiva, acreditando que o dinheiro cresce em árvores e/ou estica.
É verdade que os clubes de vídeo estão a fechar e a reduzir pessoal. Mas se a pirataria na internet acabasse amanhã, quantos empregos desapareceriam nos sectores de retalho e revenda de hardware?
A menor venda de hardware criará uma estagnação económica. Teremos menos produtividade ao usar hardware menos potente, menor venda destes produtos, menores lucros destas empresas, despedimentos e consequentemente menos pessoas habilitadas a comprar os originais, quer porque o produto não é tão interessante, quer porque o seu hardware está desactualizado, quer porque deixou de ter dinheiro para ele.
Acaba por ser um ciclo vicioso, e que sinceramente há que analisar e estudar. A pirataria não é de agora: éramos nós pequenos e as cópias das cassettes eram já na altura uma realidade entre amigos usando os gravadores de alta velocidade. A coisa apenas evoluiu na forma e mostrou a vontade do mercado, pelo que há que adequar o modelo de negócio ao que as pessoas pretendem e não tentar impingir o seu produto.
E não se julgue que isto é uma invenção nossa. Para além de diversos estudos que apareceram ao longo dos anos que demonstram esta situação, há igualmente outros que acabam por questionar até que ponto a pirataria efectivamente afecta o mercado.
Por esse motivo é que produtos como o Netflix são o futuro.
E com lojas como a AMAZON, PLAY.COM, THEHUT, ZAVVI e outras a venderem filmes completos a preço igual, ou pouco superior ao que os clubes de vídeo os alugam por dois dias, mesmo no mundo ideal sem downloads da ACAPOR não estou a ver que façam negócio. A não ser que a seguir queiram meter processos contra estas lojas por terem margens pequenas e contra os utilizadores que processaram por pirataria por não terem ficado todos amigos e lhes terem ido alugar uns filmes.
Sim, porque quem irá querer sequer entrar num clube de vídeo depois de ter sido acusado ou processado pela ACAPOR? Ou depois de ter sido multado ou ter ficado sem internet por queixa da ACAPOR (conforme a alteração legislativa que esta propõe)? Ou simplesmente conhecer alguém a quem isso tenha acontecido?
Parece-nos que o povo português reage mal a ameaças legais de empresas contra os consumidores. O caso Ensitel mostrou-o bem. Será que a ACAPOR acha que depois de ouvirem falar na comunicação social que alguém foi condenado, multado, ou ficou sem internet por queixa da ACAPOR, os portugueses vão a correr alugar filmes nos clubes de vídeo???
Parece mais provável que corram para os vendedores piratas nas feiras do que para os clubes de vídeo!
Alguns dos motivos da Pirataria
Não se julgue que todos os piratas pirateiam só porque lhes fica de graça. Há muitos que o fazem por uma questão de dignidade no tratamento que não conseguem obter com o produto original.
É que, quer se queira quer não, as medidas anti-pirataria acabam por ser lesivas para quem compra os originais e não os piratas. Basta ver o caso do texto de aviso dos DVDs que falamos anteriormente, que não pode ser passado à frente, demora alguns minutos a passar, e em línguas que 99% dos portugueses não entende, enquanto uma cópia pirata tem isso tudo removido. Quem compra um DVD “original” é castigado por isso com avisos, trailers e anúncios antes de conseguir ver o filme que comprou. Quem saca da net, carrega em Play e vê o filme!
Vamos por isso citar alguns exemplos de culpa dos produtores e que contribuem para a actual situação da pirataria, só para que não se julgue que a culpa é toda dos clientes.
Caso 1: TITANIC
O filme Titanic foi um sucesso. Tão grande que fez milhões no cinema, e foi dos filmes mais procurados nos clubes de vídeo e dos filmes mais vendidos para uso caseiro.
Mas foi também um dos filmes mais pirateados da época. O motivo? A sua protecção Macrovision que impedia que o mesmo fosse lido na maior parte dos vídeos existentes na altura, obrigando a um leitor com um máximo de dois anos de idade, ou uma dose enorme de sorte.
Caso 2: TIVO
A TIVO, conhecida pelos seus media centers e DVRs lança um aparelho controlado por um software livre e gratuito que poderia ser modificado e alterado por qualquer um. Milhares de pessoas compram o aparelho sobre essa premissa apenas para verificarem que o aparelho efectivamente permite alterar o seu software, mas não autoriza que as mesmas alterações sejam depois colocadas internamente. Este é um caso relacionado com hardware e não com conteúdo, mas que, tal como os outros, permite mostrar atitudes arrogantes das empresas que levam os clientes ao desespero.
Caso 3: Os rootkits da Sony
Cometer uma ilegalidade para prevenir outras não é algo aceitável, mas foi o que a Sony Music fez com alguns CD até ser descoberta. Efectivamente estes CD musicais ao serem inseridos nos leitores de PC instalavam sem aviso e autorização do proprietário do computador rootkits de controlo anti-cópia que expunham o computador a eventuais ataques. Mais ainda o software usava código livre que não podia ser usado comercialmente, mas foi.
Os utilizadores viam o seu computador invadido por um programa que não solicitaram, que os expunha a ataques pela internet e sem qualquer aviso. Mas apesar das ilegalidades do sistema referidas acima, a SONY escapou praticamente sem penalização. Nos EUA, após ser processada por consumidores, acabou por concordar em retirar do mercado os CD protegidos com este sistema e em aceitar a sua devolução e troca pelo download de 3 álbuns (ou 7,5 dólares mais o download de um álbum).
O curioso é que simultaneamente à aplicação de tecnologias anti-cópia a Sony vende CD-R “especiais para áudio”. Certamente será para copiar apenas os CD desprotegidos das outras editoras…
Caso 4: eMusic
As companhias insistem em impor protecções anti cópia e que criam limitações no uso dos MP3 adquiridos online, pelo que a pirataria aumenta uma vez que as versões piratas não possuem qualquer limitação. Mas eis que surge na internet a eMusic, uma loja online de comercio que abre vendendo musicas sem qualquer limitação ou protecção, e que se torna imediatamente na segunda maior loja mundial de comercio de musicas online. A Amazon segue imediatamente o seu exemplo. Actualmente até a loja iTunes da Apple vende músicas sem protecção, coisa impensável há uns anos.
Caso 5: Spore
Spore foi aquando do seu lançamento o jogo mais pirateado de sempre. Os motivos estão relacionados com a sua qualidade, e a grande antecipação gerada, mas acima de tudo com o DRM usado, o SecuROM. Na versão em causa, o número de instalações do jogo era limitada a 3 e o sistema exigia uma ligação periódica aos servidores online.
Devido a queixas de instabilidade que obrigavam a re-instalações (o que deixava apenas mais 1 instalação por fazer), e ao facto que muitos utilizadores possuíam mais do que um PC, as queixas foram aos milhões. Como consequência a Electronic Arts altera as limitações nos futuros jogos para 5 instalações, mas estes são igualmente fiascos de vendas porque os utilizadores pura e simplesmente não aceitam essas limitações em jogos de 70 euros. A Electronic Arts acaba por abandonar o método.
A versão pirata não possuía qualquer inconveniente.
Caso 6: O livro 1984
A polémica estalou quando muitos utilizadores de Kindles chegaram aos seus aparelhos e verificaram que o livro 1984 de George Orwell havia sido apagado remotamente. Estes livros tinham sido pagos e como tal eram da legítima propriedade dos seus possuidores. Mas dado que o editor decidiu que afinal não pretendia que houvesse uma versão electrónica, a Amazon remotamente apagou todos os livros dos Kindles, arrebentando a polémica sobre invasão de sistemas privados e roubo de propriedade. As versões pirateadas, naturalmente não sofreram o mesmo fim.
Caso 7: AVATAR
Avatar foi um sucesso de bilheteira, e foi o filme mais vendido para consumo caseiro. Foi igualmente o filme mais pirateado do ano. Motivos? O filme foi lançado sem qualquer extra ficando a versão com os extras e as cenas cortadas para lançamento posterior. Tal não passou por uma desculpa para vender o mesmo produto várias vezes e em packs BLU-RAY + DVD que poucos precisavam (para quê uma cópia em DVD de um filme que se tem a 1080p em Blu-Ray) mas que infelizmente tinham de adquirir se queriam garantir o filme.
Mas mais ainda, Avatar ficou famoso pela sua polémica protecção, que não era lida por mais de 90% dos leitores BD do mercado. E se muitos tiveram direito a actualizações que resolveram o problema, os possuidores de modelos já descontinuados ficaram com o filme entre mãos sem o poderem ver. Mais uma vez quem não pagou pelo filme não teve problema nenhum.
Caso 8: Rainbow Six: Vegas 2
Nada haveria a assinalar não fora o facto de o jogo possuir tremendas bugs e os patches oficiais tornarem o jogo impossível de ser jogado dado que o DRM utilizado passava as detectar todas as cópias alteradas com o patch como piratas. A própria produtora viu-se obrigada a recorrer a código pirata para resolver a situação, mas não sem que os possuidores dos originais penassem durante meses.
As cópias piratas funcionavam sem problemas desde o primeiro dia.
Caso 9: Call of Duty Black Ops
A versão PS3 do jogo foi lançada com uma praga de bugs que tornam o jogo injogável e impossível de ser desfrutado. Cinco patches depois o jogo continua na mesma ao ponto de os utilizadores se começarem a unir para pedir o dinheiro de volta.
A versão pirata é também injogável, mas não retira 70 euros do bolso do utilizador para algo que não funciona.
Caso 10: Gran Theft Auto IV
O jogo instala o seu DRM no disco. Nada que outros não façam, mas infelizmente aqui este DRM impede que outros jogos como Fallout 3 ou Tomb Raider Underworld arranquem, e tentativas de desbloquear estes jogos acabam por impedir o acesso ao próprio GTA IV.
As versões piratas eram livres de problemas.
Caso 11: BioShock e outros
O BioShock (2007) foi dos primeiros jogos para PC a vir com um sistema de protecção que requeria uma ligação à internet para “activar” o jogo após a instalação. Algo semelhante à activação do Windows e do Office da Microsoft. Acontece que durante quase uma semana após o jogo ser colocado à venda os servidores de activação estiveram quase sempre em baixo (por excesso de pedidos ou outro motivo, não se sabe). Resultado: milhares que compraram o jogo passaram vários dias em tentativas frustradas para jogar.
Apesar da protecção inovadora o jogo não deixou de aparecer na internet alguns dias antes de chegar às lojas. E quem fez o download, instalou e jogou sem qualquer problema!
Já houve outros casos idênticos, mas o BioShock foi o primeiro.
Caso 12: Starforce
O Starforce foi provavelmente o pior DRM de sempre. Instalava-se de forma profunda sendo quase impossível de remover do computador, desactivava os softwares de gravação de DVD e abrandava a velocidade dos leitores de CD/DVD ao ponto de estes se danificarem fisicamente. Vários jogos saíram com este DRM que não possuía qualquer aviso sobre as suas consequências, e somente o boicote dos compradores aos produtos com este DRM levou a que fossem tomadas medidas contra ele, tendo sido abandonado.
E como estes casos há muitos mais. E apenas demonstram que a Pirataria pode ser uma realidade, mas há motivos muito mais fortes para ela do que a mera falta de carácter. E nestes casos, o estado cria algum gabinete para defender o consumidor?
Se a versão original era problemática e arruinava hardware, a versão pirata não possuía qualquer problema.
Caso 13: Galactica
Este é um do caso que leva a pensar seriamente até que ponto a pirataria é efectivamente má para os autores.
Caso não estejam por dentro do assunto, as séries de ficção cientificas produzidas nos últimos anos tem acabado todas canceladas por falta de interesse das audiências. Houve contudo um caso de sucesso invulgar, a re-edição da série Galactica que se revelou um dos maiores sucessos dos últimos tempos.
Curiosamente ou não, apesar de ser uma série americana, começou a ser transmitida em Inglaterra antes dos EUA. E imediatamente caiu na internet.
Como consequência, quando a série começou a ser emitida aos EUA, os produtores temeram pelas audiências, pois sabiam que as pessoas já haviam assistido pela internet a muitos dos episódios existentes. No entanto a coisa funcionou em sentido contrário, tendo essa situação funcionado como promoção da série que obteve o maior sucesso de audiências numa série de ficção-cientifica dos últimos anos.
Desde então têm aparecido regularmente na internet os primeiros episódios de várias séries que estão para começar em breve (nunca mais de 1 ou 2 semanas antes). Episódios ainda não emitidos em qualquer parte do mundo. Suspeita-se que sejam fugas propositadas para promover as séries.
E ainda recentemente a página do Facebook da FOX Portugal, mostrava aparente contentamento por transmitirem as 3 séries mais pirateadas em 2010.
Afinal a pirataria é bom ou mau?
Caso 14: O caso Playstation 3
O caso Playstation 3 é um caso de estudo. Há que não esquecer que a pirataria só existe porque há sempre alguém que consegue passar por cima das protecções que existem nos produtos (e isso sim é ilegal). E esse alguém não é o Zé que descarrega coisas na internet, mas sim verdadeiros hackers.
Ora na PS3 a pirataria só seria possível caso alguém com verdadeiros conhecimentos de hacking conseguisse penetrar e abrir a consola. Mas a verdade é que durante 3 anos ninguém digno do nome hacker tentou fazer algo semelhante.
O motivo? É simples, a Sony soube fazer as coisas e antes do lançamento da consola contactou hackers no sentido de saber o que poderia fazer que tornaria a consola menos apetecível aos seus ataques.
A resposta foi simples, bastava que a Sony permitisse aos seus utilizadores explorar as capacidades da consola de forma livre, o que aconteceu com a inclusão da possibilidade de instalação de um sistema operativo alternativo, o Linux.
E enquanto a coisa foi assim, a consola manteve-se fora do alvo das atenções dos hackers.
Mas a determinada altura, e porque alguém tinha conseguido, num método ultra complexo que forçava a instalar o Windows dentro do Linux e fazer mil e uma tretas, executar um jogo qualquer pirateado, a Sony resolveu fazer aquilo que não devia ter feito. Quebrou com a promessa e removeu a capacidade de instalar o Linux, uma das características iniciais da consola e uma das premissas de venda de milhões de unidades de consolas.
Com essa situação a consola está agora exposta. E de uma forma onde a pirataria é agora possível de forma simples.
Vamos culpar o Zé por isso?
Notas finais
Cremos que este conjunto de dois artigos mostram bem o ridículo da queixa da ACAPOR, e como este empresa se move por interesses bem diferentes do que a defesa dos direitos de autor, ou de seja de quem for. Há interesses económicos dos clubes de vídeo em jogo, mas que não serão resolvidos de forma alguma com o que a ACAPOR se propõe fazer.
Aliás a ACAPOR caí no ridículo quando se propõem, num mercado como o Português apresentar 12000 queixas por ano. A própria RIAA, no mercado Americano, infinitamente maior que o nosso, apresentou um máximo de 6523 queixas anuais. A maior parte dos acusados chegou a acordo extrajudicial, e apenas alguns foram a tribunal. Em dois processos a RIAA conseguiu que lhe fossem atribuídas indemnizações milionárias, cujos acusados nunca serão sequer capazes de as pagar de tão ridiculamente altas. Ainda estão pendentes apelos para avaliar a constitucionalidade de penalizações tão desproporcionadas com a infracção.
Mas mesmo com estas condenações milionárias conseguiu a RIAA acabar com a pirataria ou desincentivar os americanos? Claro que não! Assim como não acabaram com a rádio e com a televisão nas alturas devidas. Há que crescer e adequar-se ao mundo, e não ficar preso a rodelas de plástico que ninguém quer alugar ou comprar.
Artigo por Mário Armão Ferreira e Nelson Cruz.
Se não leu, leia a primeira parte do artigo aqui.