Este artigo vai acabar por repetir muito do que já foi dito em um outro artigo, e que tem sido dito regularmente aos poucos quando se aborda este assunto, mas a realidade acaba por ser mesmo essa: O streaming vai criar mudanças radicais no universo dos videojogos, na qualidade dos videojogos, nas vendas de hardware, no desenvolvimento do hardware, e no desenvolvimento tecnológico.
Apesar de ir insistir num ponto que já abordei, algo pelo qual peço desculpas aos leitores mais assíduos e que lêem todos os nossos artigos, creio que há a necessidade de recalcar este assunto, uma vez que aquilo que dá para perceber-se é que as pessoas, entusiasmadas com a facilidade de acesso e custo dos jogos como serviço e a universalidade do jogo trazida pelo streaming, não parecem tomar consciência das possíveis consequências para o mercado de tal situação.
É certo que o que aqui é referido é um “worst case scenario”, ou cena um cenário para o pior dos casos e que demorará muitos, muitos anos a acontecer, mas o certo é que a ganância que vejo em determinadas empresas (Olá EA – Entre outras) leva-me a pensar que estas não terão grande pejo em avançar para essa situação. Afinal este “worst case scenario” pode afectar muita gente, pode afectar muita industria, muitas pessoas, etc, mas certamente, na parte que lhes toca, o aumentar de receitas no universo dos videojogos, o cenário é o que lhes é mais favorável de todos.
Olhando para as notícias sobre jogos como serviço e sobre streaming que tem vindo a público, torna-se claro que há uma grande quantidade de intervenientes a apostar nessa vertente (e são realmente muitos). E claro que nenhuma delas quer vir a dar esse investimento como perdido, motivo pelo qual, a partir do momento em que investem largas quantias de dinheiro na criação de uma plataforma, irão certamente competir na mesma e tentar ser concorrenciais, rentabilizando-a. E se isso significar que terceiros podem sofrer, irão valer-se da máxima “antes eles que nós”! Disso não tenho grandes dúvidas.
Tendo-me iniciado nos jogos no ZX-81, vi o mundo dos videojogos evoluir! Ao longo do tempo estes sofreram uma evolução gigante que se revela fascinante para quem a pode acompanhar. Passamos de jogos onde movíamos um asterisco no ecrã para jogos onde o grafismo é basicamente foto realista.
Basicamente toda esta evolução deveu-se a um grande motivo: O desejo dos Gamers de mais e melhor capacidade de processamento, de forma a correr jogos melhores e de forma mais capaz.
Ora esta procura dos Gamers de jogos melhores e de mais processamento deu origem a toda uma industria que gira, directa ou indirectamente, em torno dos videojogos. E se o normal é pensarmos apenas nas empresas que produzem os videojogos como sendo dependentes deste mercado, a realidade é que isso não é verdade. Os produtores de hardware estão também dependentes deste mercado. É ele que impulsiona as vendas, que lidera as vendas do hardware topo de gama de consumo de massas, e é ele o responsável pela maior parte dos lucros e pelo investimento em pesquisa e desenvolvimento das empresas de forma a se poder criar cada vez mais e melhor, e continuar a alimentar esse mercado.
Uma das regras dos mercados é que os preços descem conforme a procura. Os computadores tornaram-se algo acessível pois a procura permitiu a criação de sistemas económicos que podem ser obtidos por qualquer um. Os melhores modelos são mais caros pois lideram a inovação, mas é a sua venda continuada que permite que novos modelos vão saindo e que os preços desçam. E é nesses modelos de topo que estão os maiores lucros das empresas.
O gráfico da Jonh Peddie que se segue, mostra a realidade dos lucros para o ano de 2016 no mercado dos GPUs.
Como vemos, o mercado entrada de Gama só gera 22% de todos os lucros. Basicamente este hardware possui pequenas margens de lucro, sendo porém hardware que é pouco potente e que é barato de produzir.
O hardware meio de gama já representa uma fatia bem maior do lucro das empresas, com 35%, e serve para alimentar o grosso do mercado.
Mas é nos 43% de lucro com o hardware topo de gama que está o lucro das empresas. E é esse lucro que leva à inovação constante! A necessidade de manter produtos como estando no topo e capazes de gerar mais receitas é que leva à pesquisa e desenvolvimento, à constante procura de novas tecnologias, à necessidade de inovação. É igualmente esses lucros que permitem o anterior hardware topo de gama descer para meio de gama e o de meio de gama descer para entrada de gama, beneficiando assim todo o mercado e todo o tipo de clientes.
A questão é para que este hardware de topo de gama venda há a necessidade de performance. E é aí que o streaming vai ter implicações, ao requerer apenas um sistema entrada de gama para correr um jogo que anteriormente requeria localmente um hardware topo de gama. É uma mina de ouro a nível de abertura de mercado, com milhares de aparelhos adicionais alcançados e sem a necessidade de preocupação com compatibilidades.
Basicamente, num mundo onde o streaming se impunha, o mercado do hardware gaming desapareceria. Não haveria qualquer vantagem em se comprar um produto com elevada capacidade de processamento, uma vez que por um valor tremendamente inferior poderíamos obter o mesmíssimo jogo, com a mesma qualidade gráfica, num sistema entrada de gama.
Eis Assassins Creed Odissey por streaming no Project Stream da Google, a correr a 1080p 30 fps. Recorde-se que para se obter essa qualidade só é basicamente necessário um aparelho com um processador Atom e uma placa gráfica intel integrada. Mas se corrido localmente, para 1080p é necessário um processador AMD FX-8350 @ 4.0 GHz, um Ryzen 5 – 1400 ou um Intel Core i7-3770 @ 3.5 GHz, com uma AMD Radeon R9 290 ou NVIDIA GeForce GTX 970, 4GB VRAM ou mais!
Resumidamente, o streaming, ao permitir correr um jogo AAA tanto no PC mais potente, como num telemóvel de 80 euros, com a mesma qualidade gráfica, terá como implicação no mercado a anulação da necessidade dos produtos de topo. E tal trará como consequência a quebra de todo o ciclo atualmente existente.
Basicamente as pessoas deixarão de comprar modelos topo de gama, e assim sendo as empresas deixarão de investir na pesquisa e desenvolvimento desses modelos.
Sim, é certo que haverá sempre a necessidade de performance. E nesse sentido haverá sempre a produção de produtos de topo. Mas o ritmo de desenvolvimento descerá, a inovação cairá, e os preços irão subir. Basicamente voltaremos ao que havia antigamente, onde um PC capaz custava algo entre os atuais 2000 e 3000 euros. Isso é algo que poderá custar um PC Gaming de topo, mas note-se que falamos aqui de produtos de mercados de massas, e não de nichos de mercado. Um PC de topo no mercado de massas, actualmente não passa dos 1000, 1200 euros.
E o mercado Gaming não pode de forma alguma ser negligenciado. O gaming, pelo menos desde 2016 que, no Reino unido, gera mais dinheiro do que o mercado do entretenimento (musica e cinema juntos). É um mercado em expansão, e que traz muito, muito lucro às empresas, e que em 2018 viu valores recorde.
E a nível mundial, em 2017 (Fonte)!
O grande problema aqui é existirem gigantes que percebem essa capacidade do mercado gerar dinheiro, e querem abrangê-lo todo. Gastar o mínimo no desenvolvimento, alcançar o máximo de mercado possível, manter e cativar as pessoas no seu serviço, e ganhar a maior fatia do mercado. Daí que os jogos como serviço e o Streaming surgem como ferramentas ideais para tal, independentemente das consequências que isso possa vir a ter em outros mercados que não aqueles onde estas empresas operam directamente.
E se é certo que para quem quer vender um jogo só interessa vendê-lo, mas não o sistema onde ele vai correr, esta alteração no mercado trará outras consequenciais. Muitos postos de trabalho associados à pesquisa e desenvolvimento serão perdidos, a evolução tecnológica terá um retrocesso, e a tendência das empresas vai ser o produzir sistemas baratos que possam ganhar mercado. É uma alteração total do paradigma atual que acredito seriamente vai ter implicações inclusive na economia mundial.
Mas as implicações não ficam por aqui. A concorrência das várias empresas que pretendem entrar no mundo do Streaming vai fragmentar aquilo que até hoje foi um mercado uno. Atualmente as empresas criavam jogos para as plataformas existentes, mas de futuro irão criar os jogos para o seu serviço de streaming, usando-os para se distinguirem dos concorrentes. Se querem jogar aquele jogo, terão de aderir àquele serviço.
Se alguem acredita que os jogos como serviço (Gaas) são bons para o mercado desengane-se! A fragmentação será a consequência! E não será a única! Pagar um valor fixo por centenas de jogos tem implicações nas quebras de receitas que só serão interessantes para o detentor do serviço, mas não para terceiros que queiram ter os seus jogos por lá. Neste sentido as empresas terão todo o interesse em criar os seus jogos para manter o seu serviço, mas mais do que isso, interessa apostar em jogos que prendam os jogadores, o que significa que não só os jogos de jogador único serão preteridos pelos multi jogador, como a qualidade dos jogos cairá, com o conteúdo a ser lançado ao longo do tempo de forma a minimizar custos, adequar melhor o jogo ao modelo, e manter os jogadores interessados. Recorde-se que a Microsoft definiu o Game Pass como algo que requereria uma nova forma de criar, distribuir, e mesmo de jogar os jogos, mostrando que as diferenças para o modelo clássico obrigam a diferenças igualmente nos jogos.
É mais uma vez uma alteração radical face ao atualmente existente!
Claro que a malta mais jovem vai aderir em massa a estas situações. São jogos, muitos jogos, acessíveis de forma barata! Mas os jogadores mais antigos, esses não vão gostar de ver a mudança que o mercado terá, e poderão mesmo abandonar os videojogos. E tal será mais uma situação com um valente impacto pois a capacidade monetária está nos jogadores mais velhos, aqueles que gastam fortunas em edições de colecionador, em versões variadas do hardware e software, aqueles que coleccionam e comprar em quantidade.
E não julguem que eles são poucos, pois como demonstra o quadro de baixo, eles representam 43% do mercado activo, sendo que a nível de dinheiro despendido, serão certamente os que mais contribuem. De resto, 28% dos jogadores são menores e sem autonomia financeira!
Sinceramente, da parte que me toca, olho para os jogos como serviço e o streaming como uma das maiores ameaças de sempre quer aos videojogos, quer à informática em si. Preocupa-me seriamente quando vejo os grandes produtores de software a referir que a prócima geração será a última e que depois todos estaremos a fazer streaming. Isso porque eu certamente não estarei, e enquanto houver uma empresa que continue a suportar o modelo clássico que tanto sucesso teve, eu estarei ao lado dela.
Esperemos que o mercado saiba ponderar as coisas, não deixando o Streaming progredir a um ponto que possa dominar ou mesmo prejudicar o mercado clássico, pois se é certo que a co-existência pode existir, o domínio do Streaming não trará verdadeiramente nada de interessante. O streaming como alternativa é uma coisa boa, mas como substituto… poderá ser catastrófico!