No actual debate sobre as taxas da cópia privada propostas pelo governo, parece-me de extrema utilidade uma estimativa do alegado “prejuízo” causado aos autores. Diria mesmo que os responsáveis deveriam ter começado por aí. O próprio Tribunal de Justiça da União Europeia, no acórdão Padawan, afirmou que a «compensação equitativa deve necessariamente ser calculada com base no critério do prejuízo causado aos autores de obras protegidas pela introdução da excepção de cópia privada». Afinal a Directiva 2001/29 chama-lhe “compensação equitativa” e não subsidio geral de apoio à cultura e/ou autores.
Ignoremos por momentos que um estudo encomendado pela Comissão Europeia (o primeiro encontrado nesta página), publicado este ano, concluiu que não há necessariamente prejuízo e que eliminar o sistema de taxas teria efeitos positivos a longo prazo, não só para consumidores e fabricantes/importadores dos produtos taxados, mas para os autores também. Ignoremos que Malta, Chipre, Luxemburgo, e (desde Julho) a Inglaterra adoptaram a excepção que permite cópias para uso privado sem qualquer mecanismo compensatório por entenderem que o prejuízo é mínimo.
Ignoremos isso por agora. Vamos assumir que o prejuízo existe e tentar estimá-lo. Como fazê-lo? Em Espanha o governo chegou ao valor de 5 milhões de euros para 2013, tendo por critérios uma estimativa das cópias realizadas, impacto nas vendas de “originais”, preço médio de venda e a percentagem desse preço que cabe aos detentores de Direitos de Autor. À nossa escala seria algo como 1,1 milhões de euros (11 cêntimos por habitante). Várias procuras no Google, e alguns contactos, falharam em revelar os cálculos concretos. Não terão sido tornados públicos.
Existe porém um estudo semelhante feito em França pela Simavelec (Sindicato das Indústrias de Materiais Audiovisuais Electrónicos), com base numa metodologia da TERA Consultants. O que se segue é uma adaptação à realidade portuguesa, com os dados publicamente disponíveis.
Como já foi discutido anteriormente, devido às tecnologias anti-cópia (vulgo DRM) e à protecção jurídica que lhes é dada, os consumidores praticamente só estão autorizados pela lei portuguesa a copiar CD de música.
Quantos CD vendidos?
Segundo um estudo da GfK, a venda de música em Portugal rendeu 16,5 milhões de euros em 2013. Disto, 11,55M€ (70%) foi suportes físicos. Inclui cassetes e discos vinil (cujos compradores dificilmente irão copiar), mas vamos assumir que é tudo CD. A um preço médio de 10,30€ isto dá 1,12 milhões de CD vendidos.
Não sei quantos terão actualmente DRM. Vamos assumir que nenhum tem. Logo a elegibilidade (para a Cópia Privada) é 100%.
Quantas cópias?
A Simavelec estima um “coeficiente de cópia” de 150%. Ou seja, por cada CD vendido serão feitas uma cópia e meia. Parece-me exagerado, mas por agora sigamos em frente.
Teremos então 1,68 milhões de cópias privadas de CD feitas em Portugal.
Qual o prejuízo?
A Simavelec estima um coeficiente de substituição de 20%, ou seja que 20% das cópias feitas substituem um “original” extra que seria efectivamente comprado se a lei (ou DRM) não permitisse copiar. Mais uma vez parece-me exagerado, mas seja.
Serão então 336 mil vendas perdidas.
A um PVP médio de 10,30€ são 3,46 milhões de euros.
A parte que cabe aos detentores de direitos (autores, artistas e editores), os únicos que a taxa da cópia privada pretende compensar, é estimada pela Simavelec em 25%. Em Portugal deverá ser sensivelmente o mesmo.
Chega-se a um valor de 865 mil euros. Muito aquém dos 11 a 15 milhões que o Secretário de Estado da Cultura estima que as taxas irão render.
E a música vendida online?
A música comprada em lojas como o iTunes, Google Play, 7 digital, etc, já vem com a possibilidade de fazer cópias para a nossa utilização pessoal devidamente licenciada (e paga). Já a música ouvida em streaming (Spotify, MEO Music, Youtube…), cada vez mais popular, nem sequer é armazenada localmente senão de modo temporário. O utilizador não adquire qualquer ficheiro que possa copiar. Portanto, pagar uma taxa em nome desses usos nos dispositivos e suportes de armazenamento seria uma dupla cobrança. Seria abusivo.
Então e o vídeo?
Devido ao DRM, usado na grande maioria dos DVD e em todos os Blu-Ray, esses são excluídos à partida. Não se podem copiar legalmente, e como o Tribunal de Justiça confirmou só as cópias legais podem ser alvo de compensação.
Quanto ao prejuízo da gravação de programas de TV, a Simavelec calcula com base nas receitas de publicidade dos canais livres. As receitas totais de publicidade na TV em Portugal andam à volta dos 240 milhões de euros (PDF), pelo que se tudo mais for idêntico a França, dá um prejuízo de 13 mil euros. Pode-se considerar irrelevante ou de minimis, mas juntando ao que já temos ficamos com 878 mil euros.
E os livros?
Pode haver muita fotocópia, mas certamente não é feita em casa com os scanners e impressoras de jacto de tinta que o Governo pretende taxar. Seria demasiado trabalhoso e dispendioso. O problema está sobretudo nas lojas de reprografia, especialmente das universidades, e é aí que deve ser resolvido. Um dos poucos pontos positivos da proposta do PS de 2012, a infame PL118, era taxar em 0,02€ cada fotocópia e atribuir as receitas sobretudo aos autores e editores de livros científicos e escolares. A actual proposta de lei ignora por completo a reprografia.
Quanto se cobrou de taxa em 2013?
Segundo o Relatório e Contas (PDF) da AGECOP, o Departamento de Cópia Sonora e Audiovisual da AGECOP facturou 784 mil euros em 2013 (mais 10 mil no Departamento de Reprografia).
Conclusão
O prejuízo que se consegue razoavelmente estimar é de apenas 878 mil euros, o que não anda longe do facturado pela AGECOP. E isto é com os generosos coeficientes da Simavelec. Com um coeficiente de cópia de 50% e uma taxa de substituição de 10%, que me parecem mais próximos da realidade, ficaria pelos 288 mil euros. Não se afigura necessária grande alteração nas taxas ou produtos taxados, muito menos o proposto pelo actual Governo. Mais facilmente se justifica a completa extinção da taxa!
Só os 2,54 milhões de smartphones que se prevê sejam vendidos em Portugal este ano, com a taxa de 0,12€ por gigabyte proposta, e assumindo uma conservadora média de 4GB por equipamento, renderiam 1,22 milhões de euros e cobririam o prejuízo aqui calculado. Os 15 milhões de euros previstos seriam uma compensação por demais excessiva. Muito, muito longe de equitativa.
Mesmo que se inclua nos cálculos a música online, ficamos com 1,235 milhões de euros de prejuízo. Se a Assembleia da República, tal como considerou em 2013, mudasse a lei por forma a permitir a neutralização de DRM para fins de cópia privada, tornando legais as cópias de DVD e Blu-Ray, poderíamos adicionar 235 mil de euros desse lado (coeficiente de cópia de 20%, pois estão longe de serem tão copiados como os CD de música).
Por muitas voltas que se dê, não se consegue justificar os 15 milhões de euros do Governo, nem nada que se pareça. Suspeito que nem contabilizando a “pirataria” se chegaria lá. E essa não conta.
PS: Correcção feita às 20h07 do dia 12 à taxa proposta na PL118 para as fotocópias. Não era 3%, era 2 cêntimos.