Depois de ler e ouvir atentamente o que foi dito na apresentação da Proposta de Lei da Cópia Privada, sugere-se-me fazer mais alguns comentários.
Antes de mais, quem quiser ler a proposta tem aqui um PDF com a digitalização da brochura que foi entregue na apresentação, e aqui uma (bem mais legível) conversão para texto. Uma gravação áudio da quase totalidade da apresentação/debate pode ser encontrada no blog do Marcos Marado (aka Mind Booster Noori).
Comecemos pela polémica da eventual “ilegalização” das licenças Creative Commons. O Artigo 5.° diz de facto que “A compensação equitativa de autores, e de artistas, intérpretes ou executantes, é inalienável e irrenunciável, sendo nula qualquer cláusula contratual em contrário.” O que levanta alguns receios que as licenças Creative Commons que permitem utilização livre das obras sem qualquer remuneração passem a ser nulas se esta lei for aprovada nestes termos.
A questão foi colocada à mesa durante o “debate” e foi respondida. Não sei por quem, mas há uma voz masculina que aborda essa questão “mais jurídica”, por volta dos 52m40s da gravação mais completa. Passo a citar: «o que está previsto é a impossibilidade de renúncia, quando há direito à compensação. […] No caso das Creative Commons à partida ela já não existe».
É aceitável esta resposta face ao texto da proposta de lei? A meu ver, sim, embora não seja completamente satisfatória. O Artigo 5.º é pouco claro, mas considerando todo o enquadramento no Código do Direito de Autor e Direitos Conexos, esta resposta, para mim, faz bastante sentido. Vejamos. Regra geral, no modelo “todos os direitos reservados”, a cópia para uso privado é algo que acontece à revelia dos direitos exclusivos do autor. É uma cópia não autorizada pelo autor. É autorizada pela lei, como uma excepção aos direitos do autor, dizendo também que deve ser acompanhada de uma “compensação equitativa”. É essa compensação que está aqui em causa, e que esta proposta pretende tornar irrenunciável e inalienável.
Ora, no caso de uma obra publicada com uma licença Creative Commons, mesmo a mais restritiva delas já autoriza o uso, cópia, distribuição e transmissão para fins não comerciais. Portanto, a cópia para fins privados já está autorizada à priori pelo autor. Quem copiar a obra, fá-lo com autorização explicita do autor, e não ao abrigo do regime da cópia privada. Não pode portanto o autor esperar qualquer compensação. O autor não tem nada a renunciar ou deixar de renunciar.
Já no caso de haver direito à compensação o artigo 5.º impede que esta seja transferida para editoras ou outras entidades, o que acho positivo. Pessoalmente até acho que os autores e artistas não deviam poder transferir, de forma total e eterna, os seus direitos patrimoniais. É algo que permite às editoras servirem-se da sua posição no mercado para explorar os autores e artistas, sobretudo aqueles em inicio de carreira. Portanto é um passo na direcção certa.
Não sou advogado, mas esta interpretação do Artigo 5.º parece-me fazer sentido. Claro que pode e deve ser alterado para o tornar menos dado a interpretações diversas. O facto de ter gerado esta polémica é sinal que não estará muito bem escrito. No mínimo espero que fique registado nos futuros trabalhos parlamentares sobre esta lei que a intenção/interpretação do legislador é esta, e não outra. Isso já serviria de guia para os tribunais.
[A lei espanhola tem uma disposição semelhante. Ver em baixo a Actualização 2.]
Não é porém o único caso de ambiguidade e dúvida, contrastando com a opinião da Ministra em como esta é uma “lei perfeita” fruto de meses de trabalho. Parece faltar nomeadamente uma provisão que incorpore a decisão de 21 de Outubro de 2010 do Tribunal de Justiça da União Europeia, no caso que opunha a sociedade de autores espanhola, a SGAE, à empresa Padawan, em como não podem ser cobradas taxas às empresas que fazem cópias e compram equipamentos para fins profissionais.
Disse o tribunal que «a aplicação, sem distinção, da taxa por cópia privada, designadamente no que respeita a equipamentos, aparelhos e suportes de reprodução digital não disponibilizados a utilizadores privados e manifestamente reservados a outros usos que não a realização de cópias para uso privado, não é conforme à Directiva 2001/29.»
Compare-se isto com o Artigo 6.º da Proposta de Lei que determina apenas como isentos do pagamento de compensações as pessoas colectivas «[c]ujo objecto de actividade seja a comunicação audiovisual ou produção de fonogramas e de videogramas, exclusivamente para as suas próprias produções» ou «[c]ujo objecto de actividade seja o apoio a pessoas portadoras de diminuição física, visual ou auditiva.»
Esta questão foi levantada por alguém no debate, ficando porém sem resposta.
Uma nota também para a atitude da Ministra e outros membros da mesa face a objecção de que a lei foi elaborada à margem da sociedade civil. Sim, é verdade que a SPA (Sociedade Portuguesa de Autores), FEVIP (Federação de Editores de Videogramas) e APEL (Associação Portuguesa de Editores e Livreiros) podem ser consideradas representantes da sociedade civil, mas são também os beneficiários directos desta lei! Será que a Sra. Ministra acha que estas associações alguma vez se iriam opor a receber mais dinheiro? Se fosse uma legislação sobre aumentos das portagens nas autoestradas, será que a Brisa e outros concessionários seriam os únicos a consultar? Se a questão fosse comprar ou não submarinos, será que os fabricantes de submarinos seriam chamados a opinar? Ou seriam excluídos precisamente por serem os principais beneficiários?
Quem paga a factura, não tem nada a dizer? Não seria útil ouvir os representantes de quem vai pagar estas taxas – importadores, distribuidores, retalhistas, etc? Talvez tivessem sugestões úteis de como, por exemplo, aliviar o peso burocrático da gestão destes pagamentos. Mas a Ministra acha que eles beneficiam da existência dos autores e das suas obras, que as pessoas desejam copiar. Será por isso que não merecem ser consultados? E será isto, por si só, justificação para uma taxa que transfere riqueza de uns para outros?
Ao menos a DECO parece ter tido lugar à mesa das negociações. Menos mal.
Ainda este passado fim de semana, o Rick Falkvinge, fundador do Partido Pirata Suéco, escreveu persuasivamente sobre este ponto; em como a “indústria do copyright” não é um stakeholder legitimo a ter em consideração ao conceber legislação de copyright. Não sei se eu iria tão longe. Pelo menos os autores, os criadores, podem e devem ser ouvidos. As editoras, distribuidores e outros intermediários, nem tanto. A sua opinião não deve ser a única ou sequer a principal a ter em conta. O beneficiário de um monopólio não deve ser chamado a legislar em causa própria.
A Ministra foi também questionada sobre se houve algum estudo sobre o aumento de produção cultural previsto em resultado desta proposta de lei, assim como estudos do impacto económico sobre os restantes sectores. A primeira questão será para acompanhar, por vários organismos, ao longo dos dois anos após a aprovação da lei. Quanto à segunda questão, a Ministra apontou para o valor reduzido das taxas e pediu para não se levantarem “problemas que não existem” e que “nos podem prejudicar a todos”. A todos… os autores, entenda-se. A falar assim, mais parecia presidente da SPA do que Ministra de um Governo que devia representar a todos… os portugueses.
Estas questões são pertinentes, por mais insignificantes que sejam as taxas. Como foi muito bem dito, o Direito de Autor serve primordialmente para beneficiar o público em geral – com maior criação cultural, e acesso a ela. Permitir que os autores ganhem dinheiro com a criação não é um fim em si; é um meio. É portanto pertinente que o público saiba o que pode esperar em troca do que vai pagar a mais. Se o objectivo primordial fosse dar dinheiro aos autores, em vez de triplicar as compensações da cópia privada, porque não dez vez mais? Ou cem, ou mil?
Todavia não sou frontalmente contra esta lei. Não resolve a hipocrisia da cópia privada de que já falei anteriormente, mas tem muita coisa boa. Como o atribuir a compensação apenas àqueles que publicam obras sem tecnologias anti-cópia. Como o estipular a compensação devida pelas casas de fotocópias (2 cêntimos por página). É algo mal definido na lei actual, e cumprido por poucos. Dedicar 75% da taxa das fotocópias aos autores de obras cientificas e escolares é também inteiramente justo e adequado. Falta saber se isto legaliza ou não o fotocopiar livros inteiros, algo que é alvo de diferentes opiniões com a legislação actual.
Também me agrada que as despesas de funcionamento da entidade gestora não ultrapassem os 20% das receitas totais, e que esta seja obrigada a publicar regularmente os montantes distribuídos aos beneficiários.
Gostei igualmente do que a Ministra disse em relação a uma possível futura lei de combate à “pirataria” na internet. Que há que ouvir a sociedade para ver quais as soluções aceitáveis, e que o objectivo não deverá ser travar a transmissão de obras através da internet mas sim remunerar os autores através dela. Talvez algo na linha do que eu propus ante-ontem. Escusado era falar em “roubo sistemático”. Copiar não é roubar. Uma Ministra da Cultura devia saber que violação ou usurpação de direitos de autor não corresponde a roubo…
Quanto às taxas propostas, aqui fica um resumo:
Gravadores mistos CD/DVD – 4€
CD-R 700MB – 2,1 cent. (3 cent. por GB)
DVD-R 4,7GB – 14,1 cent. (3 cent. por GB)
Memórias USB e cartões de memória, isoladamente ou integrados noutros dispositivos – 6 cent. por GB
Discos externos “multimédia” – 6 cent. por GB (1TB = 60€!!!)
Discos rígidos ou SDD externos ou internos com mais de 150GB – 2 cent. por GB , mais 0,5 cent. por cada GB acima de 1TB (1TB = 20€, 2TB = 25€)
Leitores MP3, leitores video, telemóveis com MP3 – 50cent por GB
Impressoras Multifunções Jacto de Tinta – 7,95€
Impressoras Multifunções Laser – 10€
Multifunções com mais de 17Kg de peso – 127,70€ a 227€ dependendo do número de cópias por minuto
Como podem ver as fotocopiadoras de grande porte, discos multimédia e discos rígidos (internos ou externos) são os mais onerados. Os discos multimédia até prevejo que desapareçam rapidamente do mercado face a brutalidade da taxa. Naturalmente serão preferidos os reprodutores multimédia sem disco integrado. No entanto não vale a pena irem já a correr comprar se estiverem interessados nestes produtos. Ainda é uma proposta de lei. Depois das eleições legislativas veremos se será apresentada na Assembleia da República, e se será aprovada ou não.
Actualização 1: Estive a consultar o Código Penal Português a propósito de outra questão (a apropriação de coisas achadas) e aproveitei para ver o que é roubo. Roubar é essencialmente subtrair coisa móvel alheia por meio de violência ou ameaça contra uma pessoa. Não vejo, de todo, que o download e partilha na internet de obras culturais aí se enquadre. Tão pouco é furto (subtrair coisa móvel alheia, sem violência). Portanto… repitamos todos mais uma vez e com gosto: COPIAR NÃO É ROUBAR!
Quem preferir uma versão brasileira… clique aqui.
Actualização 2: Soube hoje (dia 9 de Maio) que a lei espanhola tem uma disposição semelhante ao Artigo 5.º desta proposta de lei. Está no número 1 do Artigo 25 da Ley de Propiedad Intelectual. Não consta porém que haja qualquer contestação à legalidade das licenças Creative Common em Espanha (embora também seja um facto que a lei esteja redigida de forma mais clara…). Tem havido sim tentativas da SGAE (a SPA espanhola) de cobrar licenças de difusão pública a establecimentos comerciais que só tocam música CC, coisa que os tribunais recusaram.