Com início no dia 5 de Janeiro, data onde apresentará as primeiras 1000 queixas, a ACAPOR (Associação de Comércio Audiovisual de Portugal) pretende apresentar mensalmente um milhar de denúncias de actos de pirataria com números de IP portugueses.
Neste primeiro grupo de 1000 queixas, 970 são relativas a partilha ilegal de obras, ao passo que as restantes 30 dizem respeito à usurpação de endereços de e-mail que o grupo de hackers Anonymous terão obtido quando do anterior ataque ao site da ACAPOR.
Para além da punição dos piratas, a ACAPOR pretende obter resultados a nível de mentalidades, alegando: “A partir de hoje, a população portuguesa passa a tomar consciência de que os atos ilícitos cometidos através da Internet, em concreto os uploads/downloads ilegais, estão a ser vigiados e denunciados, e assim será por tempo indeterminado.“
Sinceramente não sei se a ACAPOR tem consciência de onde se está a meter. É que me parece que o uso de meros IPs para alegar pirataria é o mesmo que culpar alguém por estar a usar um determinado casaco. O casaco é efectivamente esse, mas quem estava por trás do IP poderá não ser essa pessoa. Acusar um IP e não uma pessoa é uma situação algo caricata. É quase a mesma coisa que alguém apresentar uma lista de matriculas de veículos que viu em transgressão. Não prova que algum acto ilícito ocorreu, nem identifica positivamente quem estaria atrás do volante ou do teclado.
A identificação do real autor de um acto é muito importante. A ACAPOR teve recentemente um exemplo com o ataque ao seu site. Se os hackers tivessem lá deixado cópias de ilegais de filmes ou mesmo insultado publicamente alguém com o uso da página, a ACAPOR poderia ser acusada de pirataria ou de difamação só porque a página é sua?
É que é exactamente isso que ela está a fazer: acusar sem saber quem fez só porque viu um IP na internet. IP esse que até pode estar a ser falsificado quer pelo uso de um proxy, quer pelo uso de algum software de torrents modificado que gere IPs falsos. E poderá a ACAPOR recolher dados, mesmo públicos, que são pertença dos utilizadores ainda antes de ser provado que as pessoas são culpadas seja do que for?
Por exemplo, para obter IPs de torrents é necessário entrar no mesmo. E segundo o método de funcionamento do Torrent, quem saca também obrigatoriamente partilha. Quer isso dizer que a ACAPOR também é pirata? Ou só não é porque o seu intuito ao entrar no esquema é outro? É que nesse caso a ACAPOR terá de provar que os utilizadores que apanhou no esquema não estavam apenas a ser bons cidadãos e a apanhar igualmente IPs, ou seja terá de provar que quem lá estava acabou o download, e acima de tudo lhe deu uso.
Parece que a ACAPOR está também a esquecer-se que já houve experiências similares lá fora. Nos EUA a RIAA (associação das editoras musicais) processou uns milhares de pessoas durante alguns anos. Mas apesar da grande maioria dos visados chegar a acordos extrajudicias com pagamento de uns milhares de dólares, a iniciativa dava grandes prejuízos. E falhou tremendamente no objectivo de mudar mentalidades (o uso de redes P2P não parou de aumentar durante esses anos). Nem mesmo quando alguns acusados foram condenados a indemnizações milionárias (cujos apelos ainda estão a decorrer).
A ACAPOR não terá necessariamente prejuízos já que ao fazer queixas crime empurra a questão para o estado. O prejuízo será de todos nós contribuintes que vamos pagar esta tentativa desesperada de proteger um modelo de negócio moribundo (o aluguer de filmes em discos de plástico). Já para não falar no entupimento dos tribunais com 1000 queixas por mês. Vamos pagar isso tudo. Só porque já não alugamos tantos filmes nas lojas destes senhores como fazíamos há 10 anos. Se todas as empresas pudessem e fizessem o mesmo…
Cá em Portugal isto também não é uma iniciativa sem precedentes. Em Abril de 2006 a AFP (Associação Fonográfica Portuguesa) apresentou também 38 queixas crime. Mais de 2 anos depois, em Julho de 2008, só um dos acusados tinha ido a tribunal e sido condenado a uma indemnização de 1160 por partilhar 146 músicas. Outros três tinham chegado a acordo extrajudicial. Imagine-se o tempo que demorará a processar mil queixas. E para quê? Mudaram-se mentalidades? Faz-se menos pirataria de músicas hoje do que em 2006? São vendidos mais CDs?
Se alguma destas queixas chegar a julgamento será uma oportunidade para responder a algumas questões levantadas por estas acusações. Pode a ACAPOR levantar estas queixas quando, como mera associação de clubes de vídeo, não é detentora de qualquer direito de autor sobre qualquer filme? Será legal andar a recolher IPs sem autorização (na Suiça o supremo tribunal achou que não)? Será o método de recolha de IPs fiável o suficientes para levantar queixas quando lá fora até impressoras de rede são acusadas de pirataria? Será que, como em Espanha, a partilha de ficheiros não fica ao abrigo da cópia privada? Não será necessário a ACAPOR provar que os acusados enviaram ficheiros para alguém que não a ACAPOR para mostrar que houve violação dos direitos de autor? Não será necessário provar prejuízos daí resultantes? Será que a pessoa que contrata o serviço de ligação à internet pode ser responsabilizada mesmo que a infracção seja cometida por outra pessoa residente na mesma casa? E se alegar que foram terceiros que se serviram da sua rede sem fios? (Afinal no último ano o país ficou cheio de routers do MEO cujas passwords podem ser descobertas muito facilmente.)
Além de tudo isso, estas queixas têm como alvo as redes P2P que é um método de partilha de ficheiros que está cair em desuso. Actualmente estão na moda os sites de alojamento de ficheiros. Proporcionam frequentemente velocidades de download superiores, mesmo que não se seja assinante pago, e não implicam a necessidade de fazer qualquer upload (impossibilitando a recolha de IPs). Faz lembrar a segurança nos aeroportos nos EUA – sempre obcecados com a última ameaça (sejam sapatos, líquidos ou roupa interior explosiva), como se os terroristas não tivessem imaginação para arranjar outros métodos.
Os associados da ACAPOR gastariam melhor o seu tempo e dinheiro se se tentassem adaptar aos tempos modernos. O aluguer de filmes em cassetes ou discos de plástico já deu o que tinha a dar. Não existia há 30 anos atrás, nem vai existir com certeza daqui a 30 anos (provavelmente nem daqui a 10). Foi a mesma evolução tecnológica que o tornou possível, que agora o tornou obsoleto. Quanto mais cedo aceitarem isso melhor para todos.
Comente esta situação. Acha que a Acapor tem razão? Acha que isto cai em saco roto? Gostávamos de ouvir opiniões de terceiros.
Por Mário Armão Ferreira e Nelson Cruz