Foi realizada ontem, 2 de Maio, a apresentação da nova proposta de lei da Cópia Privada, pela Ministra da Cultura Gabriela Canavilhas na Sociedade Portuguesa de Autores. Ainda aguardamos pelo texto completo da proposta, mas entretanto já se sabem alguns detalhes através de quem lá esteve (Miguel Caetano, João Martins, Mind Booster Noori e Paula Simões).
O objectivo principal da nova lei é, como já havia sido anunciado, o alargamento da aplicação das taxas compensatórias das cópias para uso privado “aos aparelhos e suportes digitais, para além dos aparelhos e suportes analógicos, acompanhando-se assim a realidade do mercado tecnológico”. Deste modo a proposta prevê uma taxa de 2 cêntimos por cada gigabyte nos discos rígidos, quer externos como internos, e de 50 cêntimos por gigabyte nos telemóveis e tablets com leitores de MP3.
Ou seja, um disco de 1 Terabyte vai levar uma taxa de 20, e um telemóvel ou tablet com 16GB de memória terá uma taxa de 8.
Quem publicar obras protegidas com tecnologias anti-cópia (vulgo DRM) não terá direito a receber qualquer fatia do bolo resultante destas taxas, pois tal bloqueia a realização de cópias para uso privado. Pela lei actual dos Direitos de Autor, deviam ser depositados no IGAC os meios pelos quais os consumidores poderiam usufruir desses direitos, mas na prática ninguém o faz. É um sistema que não funciona.
A parte que está a levantar mais polémica é o Artigo 5 que determina que a “compensação equitativa dos autores, artistas, interpretes ou executantes é inalienável e não-renunciável, sendo nula qualquer clausula contratual em contrário”. Há quem entenda que isto “ilegaliza” as licenças Creative Commons com as quais os autores, por vontade própria, autorizam a livre reprodução e utilização das suas obras sem qualquer pagamento. Opinião reforçada pelo ataque que o presidente da SPA fez a este tipo de licenças, com o qual a Ministra terá exprimido concordância.
Pessoalmente não me parece que seja o caso, embora não tenha estado presente no debate nem lido o texto integral. Mas vou expor os meus argumentos. Primeiro porque creio que esta proposta de lei se destina a substituir a actual lei 62/98 que regula tão só e apenas as taxas compensatórias da cópia privada. Seria necessária uma revisão do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos para determinar que os autores não poderiam autorizar a reprodução das suas obras sem qualquer remuneração monetária. E tal seria uma medida por demais paternalista, proteccionista, e atentatória à liberdade dos autores e artistas. Em segundo lugar, o texto claramente refere “compensação equitativa” (da cópia privada), não remunerações em geral; e refere clausulas contratuais, não licenças de utilização. Em terceiro lugar não estou a imaginar a AGECOP cobrar a pessoas singulares taxas de utilização de obras com licença CC.
Deste modo, creio que este Artigo 5 se destinará a impedir que autores e artistas atribuam por contrato a compensação da cópia privada à sua editora.
Caso este Artigo 5 se aplique às licenças Creative Commons, vai dar azo a situações ridículas. Imaginemos que um músico publica na internet uma música sob uma licença CC autorizando a sua livre utilização quer para fins comerciais como não comerciais. Segundo esta proposta ele seria compensado pela utilização não comercial e privada, mas não no caso de alguém usar a música comercialmente, por exemplo num anúncio publicitário ou uma novela. Não faz sentido algum.
Todavia nem me surpreenderia muito que a SPA, AFP e outras associações da “indústria cultural”, os únicos interlocutores do Ministério da Cultura sobre este assunto até agora, queiram criar dificuldades às licenças Creative Commons. Trata-se de uma peça fulcral num novo ecossistema cultural que os coloca de lado, e que até os poderá tornar obsoletos.
Quanto à aplicação de taxas aos aparelhos e suportes digitais, não levanto grandes objecções à coisa por si só. O direito à cópia privada é um direito que nos assiste a todos, e até aceito que se cobre uma pequena taxa para compensar os artistas e autores. A excepção para as obras protegidas com DRM está muito bem vista e poderá servir como um incentivo para que se abstenham do DRM.
Oponho-me sim à continuação da hipocrisia que já discutimos aqui anteriormente. É hipócrita uma legislação que permita a caça (ao estilo ACAPOR) a quem “saca” obras da internet para uso privado, caça essa que o IGAC também poderá começar a fazer segundo o protocolo assinado à uns meses com a Associação Fonográfica Portuguesa, e simultaneamente preveja a cobrança de taxas em aparelhos e suportes digitais para compensar cópias para uso privado.
Se o estado deixa que os meios para fazer cópias sejam vendidos, se lhes aplica taxas para compensar os autores das cópias que são feitas para uso privado, com que autoridade moral vem depois aplicar coimas e eventualmente até penas de prisão a quem lhes der o uso previsto??? Será que os governantes, legisladores e beneficiários destas taxas não sabem qual é principal origem dos conteúdos que são gravados actualmente nos CDs, DVDs, discos externos, etc?
Isto seria como se, nos tempos do analógico, fossem cobradas taxas nas cassetes, mas fosse perseguido quem gravasse músicas da rádio. Foi precisamente para legalizar e compensar essas gravações que se inventou este regime da cópia privada e respectivas taxas. Porém agora ninguém quer legalizar a “rádio” das novas gerações, embora queiram continuar a receber as taxas. Pagamos cada vez mais por um direito que vale cada vez menos. Um direito que está, em grande parte, esvaziado, esventrado.
Oh Sra. Minististra, se uma pessoa for comprar um disco externo e lhe for cobrada uma taxa de 20 para compensar as cópias, acha que essa pessoa vai sentir-se mais ou menos inclinada a sacar conteúdos da internet de forma não autorizada? Não acha que poderá até sentir-se moralmente justificada em fazê-lo?
Que tal cobrar uma licença global voluntária de 5-10 a quem quiser partilhar livremente conteúdos na internet, para fins privados e não comerciais, e acabar com esta palhaçada de vez?
Claro que se a “indústria” preferir mais 10 anos do mesmo… siga-se lá com uns remendozitos à cópia privada e medidas repressivas que não dão em nada.
Naturalmente este governo já não tem poder para aprovar esta ou qualquer outra lei. O Parlamento já foi dissolvido. Mas a ministra garante que o Partido Socialista vai apresentar esta proposta depois das eleições, quer as ganhe quer as perca.
Actualização: Depois de ler o texto integral da proposta de lei, e ouvir a gravação da apresentação/debate, escrevi a minha reflexão e análise num novo artigo que pode ser encontrado aqui.